18 de nov. de 2010

A vizinha do lado


A vizinha veio aqui. De novo. Acho que já é a terceira vez hoje. Tá assim desde que o marido sumiu. E sumiu porquê? Não devia mais aguentar ela. Nem eu aguento. Eu que  não sou casada com ela também tenho vontade de sumir. Mas vou pra onde? Não tenho pra onde ir. Talvez se eu descobrisse onde o marido se enfiou ele deixa eu ficar lá. Oi, lembra de mim? É, era a sua vizinha do lado. Vim aqui pelo mesmo motivo, não aguentamos sua mulher. Posso ficar aqui? O pior de tudo foi eu ter dado a chave daqui pra ela. Eu não queria mas precisei de alguém pra ligar a geladeira que tava descongelando. Ligaram do hospital. Minha mãe com a bacia quebrada. Não dava pra parar de descongelar e nem levar a geladeira comigo. Só deu tempo de deixar a chave com o bilhete explicando que ia ter que ficar um tempo na mamãe, que ia estragar tudo na geladeira, que era pra ela desligar depois das 11. Naquela época o marido já tinha sumido. Um dia quem some sou eu. Sério. Não aguento mais. Vem aqui me contar as mesmas coisas de sempre. Como se eu já não soubesse de tudo lá no salão. Agora ela entra e sai daqui a hora que quer. Nem bate mais. Outro dia saí do banho e quando vejo, a TV tá ligada e ela no meu sofá. Culpa do marido que some e deixa ela tam tam da cabeça. Vive aqui, e eu não tenho vida porque ela fica aqui o tempo todo. Não aguento mais.
(...)
Agora eu sou prisioneira na minha própria casa. Aproveitei que ela saiu e troquei a fechadura. Mas ela continua vindo. Bate aqui de meia em meia hora. Não aguento mais. E eu ainda não achei aonde o marido dela se enfiou pra ir lá pedir abrigo. Fomos reféns da mesma pessoa, a mulher dele. E é culpa dele que ela ficou assim. Tenho evitado ela. Todo dia ela volta com o pão e vai logo lavar a roupa. Espero ela ligar a máquina. Tenho que ser silenciosa. Mas agora fico mais tranquila sem ela aqui, sem perturbação. Tá certo que eu não vejo mais televisão e nem ouço rádio. Justo eu que adoro a Patrulha do Gimbinho. E sempre tenho que deixar tudo apagado e não faço mais barulho. Não posso usar o telefone. E também tem que eu só posso abrir a porta pra ir trabalhar quando ela liga a máquina. E pra voltar então? Só depois que começar a novela. Ainda bem que ela é meio surda e coloca a tv no último volume. Antes me incomodava, mas agora não sei o que faria sem aquela barulheira. É melhor assim.
(...)
Essa é a terceira semana que eu me escondo dela. Ela tem chamado aqui cada vez mais. Já deve ter percebido que a chave não abre a porta, e mesmo assim continua tentando. Ouvi um arrastar de móveis nos últimos dias. Minha teoria é que ela tá afastando os móveis pra fazer um buraco na parede e entrar aqui. Culpa do marido dela, que largou e deixou a maluca aqui pra eu cuidar. Deus me livre ficar louca assim. Ouvi também gente entrar e sair, voz de homem. 2 ou 3 conversando. Devem ser os pedreiros que vieram pra quebrar a parede. Tenho que lembrar de olhar se tem terra no corredor. Mas esses dias ela não ligou a máquina e eu tenho que ficar em silêncio aqui. Não posso sair nem pra trabalhar. Ainda nem deu ir no detetive que eu coloquei atrás do marido daquela louca.
(...)
Hoje eu tomei coragem e saí. Não tinha mais comida em casa. Aproveitei que a casa do lado tá em silêncio já tem 2 dias e saí. Tranquei a porta bem de leve pra não fazer barulho. Levei os sapatos na mão até o elevador sem nem olhar pra trás. Quando voltei a a porta tava aberta. A casa toda vazia. Nem um alfinete. Deve ter acontecido alguma coisa. Nada mesmo. Em nenhum cômodo. Aposto que o marido voltou pra pegar as coisas quando ela não tava. É o que eu faria. Pena que não encontrei com ele pra fugirmos juntos. Bom, mas agora posso ficar em paz de novo. Oh, e achei um bilhete com um envelope de volume estranho embaixo da minha porta.
(...)
“Querida vizinha, queria te contar tudo pessoalmente mas não te encontrei em casa nessas últimas semanas. Espero que não seja nenhum problema de saúde e esteja tudo bem com você. Como você sabe, meu marido saiu de casa já há bastante tempo. Ele voltou pra cidade onde foi criado, onde a família dele toda ainda mora. O pai ficou adoecido e ele foi lá pra ajudar a cuidar dos negócios. Como a gente gosta muito de você, ele pediu pra eu ficar de olho em você. Você sabe, né? Ficou tão sozinha desde que o traste do seu ex-marido foi embora. A gente achou até que você tinha ficado paranóica. E quando eu contei pra ele que você tinha deixado a chave de casa pra eu descongelar a geladeira ele disse: Querida, ela é solitária. Deve ser desculpa pra você poder ir lá toda hora. Faz companhia pra ela. Não deixa ela muito tempo sozinha. Não sabemos o que ela é capaz.
Mas não liga pra isso, eu sei que você não é de fazer loucura. Ele só falou assim porque se preocupa com você. Eu queria mesmo te dar tchau, mas os homens já vieram levar a mudança e hoje é a última viagem. Pois é, o meu sogro morreu e meu marido herdou as terras e as propriedades do pai. Agora a gente vai viver lá. Uma pena mesmo que a gente não pode se despedir. E dentro do envelope tá a chave que eu to devolvendo.