23 de jul. de 2012

El Bardo Libre

Eduardo vivia contando histórias. Não, sério. Era como ele se sustentava. Incapaz de parar num lugar só, de ter uma vidinha pacada e tranquila, contava histórias de lugar em lugar, fazendo apresentações em pequenos teatros, praças e até bares, se a acústica permitisse.
Seu protagonista quase sempre era ele mesmo, fazendo das coisas mais fantásticas. Às vezes um ou outro que acreditava que ele tinha mesmo feito aquelas coisas fabulosas. Mas nunca afirmou que tinha feito alguma daquelas coisas. "O que eu conto são apenas histórias, de onde elas vem não importa. São boas histórias" clamava Eduardo.
E vivia assim, de apresentações e contações de história. Nunca dava muito dinheiro. E ele nem precisava de muito dinheiro, sempre viveu assim. Vivia de histórias, suas histórias. Nunca teve carro, casa própria, nem conta bancária. "Todo meu dinheiro cabe certinho no meu bolso, não preciso pagar ninguém pra guardar ele pra mim" E ia vivendo assim.
Numa de suas apresentações, um engravatado ficou de muitas perguntas pra cima de Eduardo. Ele não gostava muito do tipo, dizia que qualquer um que precisasse se cobrir com tantas roupas devia ter algo a esconder. O tal do sujeito queria saber de Eduardo quem selecionava as histórias para ele contar. Pareciam ser escolhidas a dedo com a certeza de que encantariam o público. "Sou eu mesmo" respondeu Eduardo.
Quando deu por si, Eduardo já estava engravatado também. O homem tinha lhe oferecido um salário que em 2 anos não conseguiria contando histórias. Agora ele era responsável por fornecer e selecionar histórias que uma certa apresentadora infantil contava no seu programa matutino.
Eduardo agora tinha tanto dinheiro que precisou aumentar os bolsos. Mas isso só serviu por pouco tempo, e ele teve que se acostumar com a idéia de uma conta bancária. Agora também tinha um carro, uma casa. Uma casa onde ele morava com a apresentadora loira.Tá certo que ele não tinha tempo de aproveitar, passava muito tempo no trabalho. Mas eram dele.
Com tanto tempo para o trabalho, quase não sobrava tempo de escrever suas histórias próprias. E quando arranjava tempo pra escrever algo percebia que suas histórias tinham ficado mais curtas. E mais deprimentes. Já não cativariam a multidão. Curiosamente, boa parte de suas histórias envolviam incêndio. Mais curioso ainda é que entre os destroços sempre encontrava-se uma gravata e uma peruca loira.

12 de fev. de 2012

troca-se problemas

Eva adorava problemas. Sério mesmo, achava um mais interessante que o outro. E adorava amostrar eles pros amigos. Talvez por isso Eva tivesse tantos amigos, pra ter mais gente pra admirar seus problemas. Eva montou uma respeitável coleção de problemas. E de amigos. Abriu até um museu pros seus problemas que valiam a pena de serem mostrados. Amigos entram de graça.
Conforme o tempo foi passando, a coleção de Eva foi aumentando. Enorme. Teve que alugar uma casinha menor na rua de baixo pra morar, já que sua casa estava cheia de problemas. E isso porque ela já tinha feito obras pra expandir o espaço pra guardar sua coleção. O que se tornou outro problema. Cada obra tinha atraso, enrolação do engenheiro, falta de material. Cada obra, um novos problemas. E a cada novo problema, mais obra pra ter onde guardar. E assim foi, a casa ocupando o terreno quase todo. O secretário de obras da cidade veio pessoalmente trazer o aviso de proibição de novas obras. Era uma honra entregar mais aquele problema ao museu que havia se tornado um grande ponto turístico daquela pequena cidade. Mas as obras violaram a lei orgânica do município e precisavam acabar.
Foi com esse novo problema que Eva decidiu que era mais simples se mudar e deixar o museu naquele terreno. Não podia mais ter problemas. Não tinha espaço. Eva então começou a pensar numa maneira de se livrar de seus problemas. Jamais poderia vender. Aqueles eram seus problemas de estimação, mas aceitaria fazer trocas. Pelo menos vai manter o museu com novidades. Só que Eva não calculou o tamanho dos seus problemas. E acabava trocando seus pequenos problemas por maiores. Eva trocava "topada no dedão" por "gravidez indesejada". Sem perceber o tamanho dos problemas. E vamos combinar que se colocarmos esses 2 problemas num ringue de gelatina acaba sendo um duelo de Davi contra Golias. Sem falar que "gravidez indesejada" depois de um tempo evolui pra "filho pra criar" e assume proporções assustadoras.
Então, o problema de espaço voltou, e dessa vez ainda maior, ou menor, já que não tinha espaço pro problema ser maior. Por sorte, o vizinho do lado do museu já não aguentava mais estacionarem em frente à sua garagem. Nem o barulho dia e noite, já que problemas não tem noção de hora e acabam te atazanando quando você menos quer. Então o vizinho aceitou trocar o problemão que se tornou sua casa pela viagem pra Tailândia que Eva ganhou de aniversário. A passagem e o hotel estavam pagos, mas não incluia café da manhã, o que não deixa de ser um problema. Então Eva conseguiu um grande espaço pros seus problemas. Na verdade, não era tanto espaço assim, porque aquele espaço já vinha com seus próprios problemas. Mas serviu e tinha espaço até pra Eva morar.
Os amigos começaram a se preocupar com Eva. Não a viam mais, ela só tinha tempo para seus próprios problemas. O museu não podia parar, as pessoas queriam ver aqueles problemas. Pessoas gostam mesmo ver problemas que não são seus, e gostam mais ainda de falar sobre os problemas dos outros. Então os amigos resolveram tirar Eva daquela situação, cada um resolveria um problema pra ela. Se reuníram e foram até o museu-casa-depósito que havia se tornado aquela aberração de guardar problemas. Chegando lá encontraram uma fila enorme de gente querendo saber de problema dos outros na entrada do museu fechado e nem sinal de Eva.
O ex-vizinho, que tinha virado amigo de Eva depois que voltou de 2 semanas maravilhosas na Tailândia, ainda tinha uma chave de reserva. Abriram a porta e se depararam com o museu vazio. Nada de problemas e ainda nada de Eva. Percorreram todas as alas e andares. Nadica de nada. Eva tinha desaparecido. Foi então que um dos amigos achou Eva caída no canto de uma ala do sub-solo. Ela contou que estava reorganizando uns problemas quando um antigo problema de estrutura da casa caiu sobre ela. E não tinha forças pra se levantar. Mas de alguma forma, o problema que caiu em cima dela não estava mais por ali. Eva disse ao amigo que sabia que era seu fim. Não conseguiria sair dali viva. Eva fechou os olhos. E abriu um enorme sorriso. Um sorriso que o amigo não via há muito tempo em Eva. Um sorriso de quem não tem problemas.