14 de abr. de 2014

A saga das roupas I

Um dia você acorda e está usando as roupas de outra pessoa. Não são suas, isso é certo. Então você tira as roupas estranhas e elas ficam ali no chão esperando um dono que não vai mais voltar. E você fica nu encarando uma trouxa de roupas que não lhe cabem mais. Daí você começa a procurar suas roupas e percebe que não possui roupas. Então fica ali exposto, nu, seu eu verdadeiro, sem nada pra mascarar. E pessoas começam a chegar, perguntam pelo dono das roupas ali deixadas. Te acusam de ter feito algo com ele. Você tenta explicar que não são suas roupas, e você não onde o dono está. Não sabe nem como foi parar ali. E mais pessoas chegam e te interpelam sobre as roupas.
-Não sei, já estavam aí quando eu cheguei. Não são minhas, pois como pode ver estou nu, e se minhas fossem as estaria vestindo.
E você corre. Pra bem longe dali, pra outro lugar sem roupas de outra pessoa largadas no chão. E você pode correr até achar outras pessoas, que não conheçam o dono daquelas roupas. Ou você pode continuar correndo até achar pelo menos um par de calças.

10 de fev. de 2014

Procura-se um ego.

Eduardo não conseguia achar seu ego. E por nada no mundo conseguia lembrar onde tinha deixado-o.
Ele sabia que era um ego grande, imponente. A única coisa no mundo que tornava desnecessário comprar um carro grande.
Sabia também que era onde fabricava seu orgulho, e sem orgulho não conseguia muita coisa. Aceitava os desmandos do chefe, mesmo sabendo que era funcionário público e não precisava ouvir desaforos. Tinha a vida feita, mas feita pela metade. Faltava algo, uma parte gigantesca da sua alma.
Tentou colocar a culpa na ex-mulher.
Você sempre teve ciúme do meu ego, berrou pra ela ao telefone.  Mas ela o garantiu que não tinha ficado com o ego no divórcio.
"Deve estar no meio das suas velharias, que você tanto gosta. Você sabe que nunca acha nada naquele mafuá."
Ela provavelmente tinha razão. Teria dado outra olhada no quartinho de bagunças se já não tivesse olhado 3 vezes.
O novo apartamento era pequeno, vergonhosamente pequeno,  faltando muito pra ser chamado de aconchegante. Era só quarto, sala/cozinha/copa e banheiro. A sala virou quarto, já  que o quarto mesmo era para os tesouros. Velharias são as coisas dela, pensou olhando pro quartinho.
Mediu a porta da sala, só pra ter certeza que o ego teria passado por ali. Apertando bem, caberia. Tem que estar aqui dentro.
Se caiu na mudança, aquele cara do frete vai levar um baita processo. Meu ego nem dá pra ser indenizado no pequenas causas. Bem grande, funcional, único dono. Valia uma fortuna em amor-próprio.
Tornou a ligar pra Valéria.
"Não tenho o telefone da mudança, e pela última vez, eu não peguei."
Estava apreensivo e foi pro único lugar que se sentiria bem. Seu quarto de moleque na casa dos pais. A casa estava fechada há tanto tempo. Ninguém pisa aqui há meses. Parecia que a poeira estava estática no ar. No primeiro abrir de portas, uma nuvem se levantou.
Tenho que me livrar desse lugar, só serve pra trazer lembrança.
Foi direto pro mesmo quarto que tinha sido antes de seu irmão. Como bom temporão, esperou seu irmão sair de casa aos 21 anos e nasceu, poupando os pais de ter que arrumar uma casa que coubesse a família.
Tudo no quarto era herdado do irmão mais velho. As roupas, fora de moda já quando usara, 30 anos antes.
Foi aí que reparou numa caixinha de madeira. Aquilo não era do irmão, não era de ninguém além dele. Uma caixinha de madeira com cartões de jogadores de futebol. O avô deu e disse que era só dele. E palavra de avô ninguém tira. Ali dentro tinha seus verdadeiros tesouros, o resto era mesmo velharia perto daquilo. Os cartões ainda dos jogadores do Vasco. Ano após ano. Com aquilo sentiu que poderia encarar o mundo sozinho novamente. E se encheu de orgulho, ainda mais do que antes.